Cap 1
Chamo-me Jaime Ferreira e sou da Maia, concelho com cidade
homónima, situado poucos quilómetros a norte do Porto. Até onde chega a memória
familiar, (a memória genealógica dos pobres é curta), tanto do lado do meu pai
como da minha mãe, todos os nossos antepassados vêm de uma pequena aldeia
chamada Silva Escura.O que acabo de dizer não é mentira, mas também não
corresponde inteiramente à verdade.
Porque, na realidade, não sou da Maia, nem
me chamo assim. Para efeito da vida de todos os dias, é uma meia verdade útil.
Falo português e estou familiarizado com a cultura portuguesa, a sua história,
gastronomia, até as subtilezas do seu sentido de humor. Mas, às vezes, faço
umas perguntas um bocadinho desconcertantes, do tipo “O que é a EDP?” ou “O que
é um recibo verde?”, perguntas que já suscitaram mais de um equívoco porque o meu
interlocutor fica um pouco desconcertado. Depois, percebe que “não sou de aqui”.
É verdade; em matéria de coordenadas e domicílios, nem sou daqui, nem sei quem
mora em mim. (Essa parte, Pessoana à brava, eu não lhe digo). Só explico que nasci
na Venezuela e que passei lá a maior parte da minha vida.É por esse motivo que também me chamo Jaime Da Costa, com D
maiúsculo. Em espanhol, o “da” não se interpreta como uma partícula, mas como
um nome por direito próprio. Falo espanhol e tenho um fraquinho pelo milho, o “chile”,
“el aji”, os ingredientes comuns a toda a comida latino americana. Noutras
palavras, sou filho de emigrantes, ou, para ser mais exato, sou neto de emigrantes,
dado que foi o meu avô quem chegou à Venezuela no Verão de 1945.
Reza a lenda familiar que o barco foi atacado por um U-boat, um submarino alemão, ao largo
dos Açores, mas sem consequências de maior. A história deve ter um bocadinho de
imaginação a mais; pela primavera de 1945, a estratégia britânica dos convoys tinha vencido a Batalha do
Atlântico, e a frota dos U-boats estava
praticamente destruída. Coisas que vim a saber depois, claro. Seja como for, quando
as notícias de que a guerra tinha acabado chegaram ao barco, a festa descontrolou-se
e o meu avô perdeu os sapatos nos excessos da celebração. Perdidos, caídos ao
mar, roubados, queria-se lá saber. O único preocupado era o meu avô, porque
eram os únicos sapatos que tinha. Anos mais tarde, homem de negócios bem
estabelecido, o meu avô Alberto, também conhecido pelo Tanêco, ou pelo Mouro
(mal imaginava ele que partilhava a alcunha com Karl Marx), gostava de contar
que tinha chegado à Venezuela literalmente descalço. “Descalço, descalço, assim
como lhe digo”. Mas como não há mal que por bem não venha, por essa mesma razão
foi o primeiro a ser escolhido na longa fila de emigrantes desempregados. Alguém
deve ter assumido que se tratava de um lavrador acostumado à dureza da vida, a
trabalhar descalço, um camponês forjado na inclemência árida da Finis Terra
lusitana. Não sei, já estou a inventar. O que é mesmo certo é que, no remate
desta história, o Mouro gostava de referir que, em toda a sua vida, só tinha
estado um dia desempregado (o dia em que chegou descalço). Era bom referir
sempre as duas coisas. Iam juntas.
Naqueles anos, chegava à Venezuela gente de todos os
quadrantes da Europa: espanhóis (refugiados de duas guerras), italianos
(refugiados de duas frentes), portugueses (dos quatro cantos), e muitos judeus,
que chegavam desde o centro da Europa a Lisboa, via Magreb. O triste périplo
deles vê-se no filme Casablanca. Muitos destes judeus optavam por ir para os
Estados Unidos; outros, menos ousados, já que em Portugal havia um Gestapo em
cada esquina (diziam), apanhavam o primeiro barco que partia sem importar muito
o destino. Foi assim que muitos foram atraídos pela sedução fácil da Argentina
de Perón, esse paraíso envenenado, onde acabaram por constituir uma comunidade que,
ainda hoje, é importante.
Nos dias que correm, a Venezuela, tal como outros países
latino-americanos, é uma nação devastada. Mas não era assim em 1945, quando o
meu avô Tanêco chegou à terra prometida. Chegou mesmo à raia, no momento em que
acabara de começar a exploração petroleira de forma intensiva e se produzia a
modernização do país. Entre 1945 e 1975 (para escolher duas datas emblemáticas
da história venezuelana), um país que vivia nos limites de uma economia de
subsistência, à base de milho e mandioca, floresceu repentinamente, eclodiu em termos
de desenvolvimento. A face mais visível deste surto repentino de riqueza, foi a
construção, a edificação da infraestrutura urbana. As cidades, sobretudo Caracas,
fervilhavam em construção pública e privada. O meu avô teve a sorte de ser apanhado
nas aspas desta voragem de fortuna. Muitos outros emigrantes eram padeiros, serralheiros,
mecânicos, camponeses. O meu avô era carpinteiro e teve a sorte de ser
contratado por uma empresa de construção americana, uma transnacional de grande
dimensão. Passado pouco tempo, a companhia americana sugeriu-lhe que
constituísse a sua própria empresa, já que o seu “core business” (também eu duvido
que lhe falassem assim ao meu avô) era, especificamente a construção e não,
propriamente, a urbanização inicial. Noutras palavras, por algum motivo, queriam
subcontratar o acondicionamento de terrenos: movimentos de terras, arruamentos,
sistemas de águas e eletricidade. Eram tempos de empreendedorismo silvestre,
para não dizer selvagem. Havia coisas para serem feitas, urgentemente, e alguém
as devia fazer e era para já. Partilhava-se o sentimento comum de que aquela
era a sétima onda, a onda boa, e de que havia que aproveitá-la enquanto durasse.
E tinham razão. O Mouro, mesmo sem perceber exatamente os pormenores do que os
americanos pretendiam, extraía uma ideia geral que lhe bastava. Por muitos
esforços que os americanos fizessem para convencê-lo a aprender os rudimentos
do inglês, o meu avô nunca passou do “OK Míster “, o que não deixava de ser uma
frase escolhida com muita inteligência. Já não existiam terrenos disponíveis no
centro da cidade; agora, era preciso crescer para a periferia. A companhia (era
assim como se conhecia a empresa matriz lá em casa, “a companhia”) não parava
de adquirir lotes extensíssimos, enormes, muitas vezes, em áreas rurais onde
era difícil de imaginar que alguma vez lá chegasse a cidade. Caracas, hoje em dia,
é uma cidade de seis milhões de habitantes e estende-se por um vale ao longo de
quarenta quilómetros, sem contar com várias cidades-satélite importantes. Esses
terrenos longínquos há muitos anos que foram incorporados à cidade.
A companhia
comprava um destes terrenos imensos e chamava o meu avô aos escritórios. Dizia-lhe
onde ficava o terreno, mais ou menos o que é que queria dele, punha-lhe um
plano nas mãos e dizia-lhe: “seis meses” ou “três meses”, consoante a dimensão
ou a urgência da empreitada. A dificuldade linguística chegava a facilitar o
processo, porque impedia esclarecimentos inúteis, objeções de fazer perder o
tempo. “Três meses, tri, ok mister.” Obviamente que o meu avô, que mal sabia
ler, via-se grego com os rabiscos fininhos daqueles planos cheios de hipsometrias,
curvas de nível, geodésicas, o diabo a quatro. Contratou um engenheiro. E
depois outro, e, quando a empresa dele já tinha dezenas de máquinas para
movimentar terras e centenas de trabalhadores, concluiu que precisava de gente
de confiança que o ajudasse a perceber como é que andava o negócio. E quem mais
indicado que o genro que estava em Portugal?
O meu pai tinha educação secundária (isso equivalia pelo
menos a um PhD, nos nossos meios e naquele tempo!) e, para além de estar bem
integrado (era o tipo de pessoa que fazia e gostava de estar rodeado de montes
de amigos), vinha de uma família de posses e ambições relativas, do lado do meu
avô Arménio. E, seja por essa ou por qualquer outra razão, ao princípio, o meu
pais não se mostrou muito entusiasmado com a ideia da Venezuela. Encontrou-se uma
solução de compromisso: o meu avô Alberto delegaria nele a coisa
administrativa, seria o responsável máximo pelo escritório. O Adélio armou-se
de compasso, lupa e régua escalada, e lá foi ele, com a minha mãe, caminho a um
futuro do qual se viria a arrepender para o resto da vida.
Quando chegou ao “escritório”, deparou-se com um contentor
no meio de uma zona de guerra, onde a poeira era tanta que não se via a ponta
do nariz. O “escritório”, com chapas de metal expostas todo o dia a um sol inclemente
de 40 graus, nem uma simples ventoinha tinha. Os planos andavam pelo chão, ou estavam presos
pelas patas de uma cadeira, manchados com tanta lama e tantas nódoas de vinho e
Coca-Cola que, na sua maior parte, eram ilegíveis. Trabalhava-se por
aproximação “hectómetra”. Cem metros mais para a frente ou mais para trás, no
fim, as ruas lá se entroncariam umas com outras, ao cabo dos três meses, que
era o que os americanos queriam. “Tri”, o resto eram pormenores. Mas a coisa mais
impressionante daquilo tudo, contava o meu pai, era ainda a sensação de estar
numa guerra, com rugidos de retroescavadoras que pareciam aviões, tanques, explosões
(o dinamite para rebentar a rocha) e, sobretudo, feridos. Às vezes, mortos. O
ruído das máquinas, a falta de visibilidade e, sobretudo os padrões de segurança
da época, naturalmente, contribuíam no seu conjunto para uma sinistralidade
inimaginável nos nossos dias. As tarefas de gestão do meu pai ficaram rapidamente
limitadas ao pagamento dos salários e ao transporte de feridos para o hospital.
Bom. Chamo-me Jaime Costa Senra, porque o meu pai se chamava
Adélio Costa Senra, ambos os meus avós se chamavam Costa Senra (eram primos
direitos) e os meus tataravós e seus parentes chamavam-se Costa Senra, como se
pode confirmar pelas dúzias de lápides do cemitério de Silva Escura da Maia.
Contava o meu pai que, na altura em que me fora registar, na Venezuela, tinha
pedido ao homenzinho que transcrevesse o meu apelido completo. O funcionário da
Junta de Freguesia disse-lhe que as regras era ele quem as impunha, que se estava
a “cagar para as leis portuguesas”. “Este portugués se cree de la nobleza, gajaja”
A regra era esta: dois nomes e dois apelidos e que “Da Costa” ia ficar. Ponto
final, tenho dito. Ficou claro que o registo civil venezuelano não era a corte
de Versailles. Alguns anos mais tarde, já em Portugal, vivia com os meus avós,
quando chegou a hora de tirar o bilhete de identidade para me apresentar ao exame
da quarta classe. O meu avô chegou a casa e apresentou-me um flamante bilhete
de identidade, novinho em folha. Para mim, obviamente, era um passo importantíssimo,
uma espécie de certificado oficial por ter passado um qualquer rito de iniciação
ou puberdade. Jaime da Costa Senra, dizia o plástico da consagração nacional.
Não passaram muitos dias até que o meu avô, visivelmente alarmado, me pediu o
bilhete de identidade e saiu disparado pela porta fora. Regressou com outro
bilhete, azul, que rezava “cidadão estrangeiro”, Jaime Costa Ferreira.
A questão era esta: como cidadão português, estava sujeito
ao cumprimento do serviço militar; como cidadão estrangeiro, não. Estávamos em
1969, a guerra do ultramar era o acontecimento que dominava a vida nacional e
dos particulares. A verdade é que me era completamente indiferente a composição
do meu nome. Só de adulto, é que comecei a ter algumas reservas e a fazer algumas
reflexões. Sempre fui extremamente adverso à autoridade, sobretudo aos seus argumentos
e posições. Não tenho nada contra a polícia, por exemplo, não me mete a menor impressão.
A polícia e o exército são instituições vocacionadas para a força, não se metem
com a autoritas. Incomodam-me muito
mais advogados, médicos, juízes, que, geralmente escudados por organizações gremiais
anacrónicas e absurdas, mas profundamente incrustadas no tecido da sociedade
como verdadeiros tumores, se sentem no direito de atuar de forma volúvel e discricional
ao amparo de sacrossantas investiduras, que lhes advêm da formação, do grémio,
da tradição, das redes de influência e de interesses, das redes de compadrio e
nepotismo político, enfim, de tudo menos da empatia, da humildade, da
sensibilidade social e do bom senso. A influência perniciosa destas
instituições estende-se ao resto da sociedade portuguesa num processo nefasto
de metástase que não deixa um órgão intacto, um pedaço de tecido são. E chega
aos cantinhos mais recônditos da nossa querida pátria. Às vezes, é com espanto
que assisto a cenas em que um porteiro de hospital adota modos e posses de
autoridade que ruborizariam o Speaker
da House of Commons. Mas esse
espécimen, o prosapioso, nem sequer é o mais comum ou perigoso.
O maior representante do género, deste funcionarius silvestrus, o maior exponente desta autoridade
pequenina, desta réplica atenuada, deste remedo de mando é o pequeno burocrata,
encolhido na cadeira, amargurado desde o princípio e até ao fim dos tempos. Todos
os dias, o chefe lhe dá nas orelhas (porque o chefe do chefe também lhe faz a
vida negra) e chega a casa com vontade de bater na mulher e nos filhos. Este ou
esta, é a funcionária de quem depende um certificado, uma licença, um
diferimento impreterível, uma decisão de um tribunal, uma sentença. E dela, e
do ciclo menstrual que se lhe nota no focinho, podem chegar a depender decisões
que afetam, de forma substancial e significativa, a vida do cidadão comum. O
papel que está mal e que é preciso voltar a fazer, o Sr. engenheiro que agora
não pode atender, o selo que falta e não sabe indicar onde se pode adquirir, o
documento que é preciso voltar a redigir…
O meu avô só esteve na Venezuela 12 anos, até 1957. Talvez
não tenha aprendido a ler as geodésicas, mas aprendeu rapidamente a gerir o
negócio. Gostava de contar que, naqueles anos, pelo Natal, chegava a casa de um
dos engenheiros, estacionava o carro no passeio e batia-lhe à porta. Pedia para
falar com o engenheiro “se faz favor obrigado”. E, quando este vinha à porta, desejava-lhe
boas festas e punha-lhe nas mãos as chaves do carro novo que estava estacionado
à frente da casa. O homem já sabia e até já contava com o presente, porque
aquele era um ritual que se repetia todos os anos. “Agora, se não se importa,
dê-me a boleia até casa, porque ando sem carro” contava o Mouro e ria-se como
um desalmado. Eu, que viria a ouvir estas histórias alguns anos mais tarde,
imaginava aquelas aeronaves dos anos cinquenta, com asas, metade da carroçaria
cromada e a outra metade em madeira não sei de quê. O meu avô tinha paixão
pelos carros, coisa que eu nunca tive, nem imagino o que é. Depois de chegar a
Portugal, fez uma casa com uma garagem enorme. A minha avó dizia que era um desperdício
de espaço e de casa, onde é que já se tinha visto, todo o rés-do-chão da casa,
ideal para a cozinha, estava praticamente ocupado só pela garagem. A casa mais
mal concebida, menos funcional de toda a aldeia. Mas ele, construtor
experiente, sabia o que estava a fazer e, pouco a pouco, acabou por meter lá
três carros. No princípio dos anos sessenta, no norte do Portugal semi-interior,
quando ter um carro era o símbolo máximo de status,
no âmbito da nossa pequena aldeia, ter três era uma aberração plutocrática
quase ofensiva. A partir dos cinco anos, fui viver com ele e comecei a “ganhar a
vida” a lavar carros. Mais tarde, percebeu que o dinheiro que me dava começava
a ir para bilhar e cigarros (ainda não tinham aparecido os jogos de vídeo) e
retirou-me a consignação comercial automotora. Foram tempos difíceis.
Os meus pais também regressaram a Portugal, mas voltaram, pouco
depois, à Venezuela, em circunstâncias muito peculiares, que explicarei mais
adiante. Quando era miúdo, como todas as crianças, talvez, tinha uma adoração
incondicional pelo meu pai. E não era só eu; muitas das pessoas que o rodeavam
achavam extremamente fácil gostar dele. Também não herdei essa classe de
carisma. Mas, quando o voltei a encontrar e a viver um breve período com ele,
as nossas relações deterioraram-se até à rutura. O meu pai já estava
completamente alcoolizado. Ainda conseguia fazer a vida normal e profissional
dele durante o dia, relativamente sóbrio, mas, chegada a noite, na intimidade,
bebia e infernizava todos quantos o rodeavam. Tudo estava mal, ninguém fazia
nada bem, ele era o único que se sacrificava, a vida, em geral e em particular,
era uma merda.
Distanciei-me rapidamente do meu pai, casei-me muito novo,
apenas concluída a faculdade, aos 22, e só via o meu pai muito de vez em
quando. Um distanciamento que não era só físico, mas sentimental, anímico,
quase de natureza moral. Se alguma coisa tinha relação com o meu pai, não tinha
nada a ver comigo. Distanciei-me, por exemplo, dos filhos dos amigos do meu
pai, miúdos com quem tinha partilhado uma boa parte da minha primeira infância.
Uns anos mais tarde, tinha nascido a minha filha Catarina há pouco tempo, os
meus pais vieram para Portugal e eu fiquei na Venezuela. Em 1994, chamaram-me
de urgência porque ele estava a morrer. Dizem que perguntava muito por mim,
naqueles últimos dias. Quando já não podia falar, apontava insistentemente para
a janela. Vim a correr da Venezuela. Cheguei a casa vinte minutos depois de ele
falecer. Percebi que gostava de ter passado um tempo com ele, mesmo com uns
copos e tudo, mesmo com aquelas conversas desconexas que eram tão difíceis de
acompanhar. Mas já era tarde. Também percebi que lhe perdoava ter destruído a
vida dele (e a da minha mãe) com a bebida, direito que não me podia abrogar mas
que, naquele momento, pensava que tinha. E percebi que ele sempre soubera o que
eu ainda não tinha entendido: que, no fundo, éramos muito iguais. Fisicamente,
sim, e em mais de um sentido.
Uns meses depois, publiquei um livro
que decidi assinar Jaime Da Costa Senra. Estava a dizer “filho de Adélio da Costa
Senra”. Não era um pseudónimo, nem uma brincadeira tipo nom de guerre, mas a adoção de uma identidade a outro nível, e uma
homenagem muito pessoal ao meu pai, que sempre depositou em mim tanta esperança
que defraudei. E estava mesmo a cagar para o que um insignificante burocrata
tivesse decidido estampar num estúpido bilhete de identidade. A minha
identidade, pela qual sempre tive imenso respeito porque nunca a entendi nem
aceitei muito bem, mas na qual reconheço um imenso peso de ancestralidade, a
minha identidade era um bocadinho mais complexa do que um plástico que se
guarda colado ao cu, no bolso de trás das calças.
Chamo-me Jaime Ferreira, Jaime Da
Costa, Jaime Da Costa Senra e esta é, confesso com toda a vergonha de que sou
capaz, a minha autobiografia. Nunca imaginei chegar tão baixo! As autobiografias
são artigos de uso muito limitado. Servem de passerelles para a vaidade, evidentemente. Como cadafalso para a
execução de vinganças, como se sabe. Servem para passar o Photoshop pelo
passado e deixar tudo mais bonito na fotografia. Sempre. Dentro de outro
campeonato, estão os relatos por encomenda, que acho que foram inaugurados por
Nixon, quando vendeu as suas memórias por três milhões de dólares, em 1973, sem
ter que escrever uma linha. Churchill ainda era um homem de outro século e acho
que escreveu as suas pelo seu próprio punho e letra. Dentro desta categoria, caiem
as memórias das estrelas de cinema, das rockstars,
das amantes dos presidentes de todo género, dos bonecos do jet set político, das modelos porno, enfim, dos bonitos, ricos e
famosos deste mundo, para quem o espaço das “Caras” e “Holas” ainda não é
suficiente. Parecem-me autobiografias escritas ao encontro duma curiosidade má.
Torta.
O supra sumo do kitsch sempre me pareceu uma frase muito
comum, que, ainda ontem, a ouvi: “A minha vida dava um livro…” Mas a senhora
acrescentou uma nota final que, definitivamente, a redimiu: “…nem que ficasse só
para os meus filhos.” E este é um dos poucos sentimentos legítimos que pode
levar alguém a executar um projeto tão impudico e voyeurista como este, esta
coisa de pôr a corar os lençóis manchados com as nódoas da vida. O testemunho
humilde, os dois nomes gravados com uma navalha no tronco de uma árvore, o
livro assinado na primeira página, esse sentimento profundo de querer ter um
filho e de lhe escolher um nome são atos pequeninos que respondem a um
sentimento imensamente profundo: passei pela vida, estive aqui! A Ana e o Rui
ficaram gravados no tampo de uma carteira, dentro de um coração. Uma data, 1983.
Que será deles? O que é que a vida lhes fez? Lembrar-se-ão um do outro?
Reconhecer-se-iam na rua? Casaram-se e foram felizes? Onde estão?
Mas nenhum destes motivos
justifica este livro. Nunca pensei em escrevê-lo. Entre Dezembro do ano passado
e Março deste ano, estive sumido numa depressão realmente escura. A depressão,
geralmente, mede-se por escalas, como por exemplo a Hamilton Rating Scale of Depression, que os psiquiatras, com a
prática, aprendem de cor; olham para um paciente e até pela forma de andar e
falar, já lhe avaliam o grau. As escalas não são mais que uma série de
perguntas às quais a pessoa deve responder e que vão desde o “Sente-se triste?”
até o “Pensa no suicídio?” As pessoas bipolares, ou maníaco-depressivas, como
eu, tendem a depressões particularmente devastadoras. A meio dessa depressão, assim
que me senti em condições de andar e falar, fui ao psiquiatra, reiniciar, pela
enésima vez, um tratamento. Durante esses três meses, tentei escrever um par de
e-mails, mas não consegui. Os dedos não acertavam com as teclas, e as frases,
mesmo que coerentes, ficavam estupidamente solitárias sobre o papel. Careciam
de sentido pelo simples facto de estarem sozinhas. Se soube-se, explicava
melhor.
Estava em Portugal, sem uma pessoa
de família, com um único amigo que vivia a 50 quilómetros de distância e com
quem falava uma vez cada quaresma. O Pires. Não fazia a menor ideia do que ia
fazer, em que podia ou devia trabalhar. Tinha a perfeita noção de que os meus
recursos financeiros eram extremamente limitados e que se iriam esgotar em
pouco tempo. E tudo porque as leis do universo tinham colapsado, as constantes
da física tinham implodido. O impensável tinha acontecido: estava a divorciar-me
da Célia. Neste novo cenário, a hecatombe tinha destruído completamente a
realidade. Nada fazia sentido, nada valia a pena, nada valia um chavo. Se isto
era o que ia ficar da vida, mais valia não ter ficado nada. E nem sequer me restava
o alívio que dá a revolta, a acusação, a indignação. Eu, exclusivamente eu,
tinha sido o autor, o responsável da merda que fiz. Pior que cometer um delito
e acabar na prisão. As faltas e as condenações, são regras de jogo claras. E de
acordo a esta regras existe o castigo, é mau, mas redime, alivia. Eu não tinha
castigo. Não podia voltar refeito para a vida uma vez concluída a punição.
A senhora da limpeza vem todos os
sábados e tem a chave de casa. Ao abrir a porta, encontrava-me sentado no sofá,
na mesma posição em que me tinha deixado na semana anterior, a olhar atentamente
para a televisão apagada. Já não sabia que lhe dizer, como me justificar, que
doença rara inventar (tudo menos confessar a uma senhora de limpeza que se tem um
problema de foro psiquiátrico). Três semanas após iniciado o tratamento, num
sábado, ouvi a Maria José meter a chave na porta e entrar. Sai do meu quarto em
pijama, sem lavar a cara, assim como estava, e sentei-me à frente do
computador. Nesse dia, escrevi três mil palavras. Nada mau. Mas, no dia
seguinte, escrevi nove mil! E quando me apercebi, estava a escrever um tipo
muito particular de autobiografia. Não era o apanhado de uma vida, mas a tentativa
do viúvo que se quer agarrar mecanicamente à vida depois de perder a mulher. Já
sabia que seria um exame. E depois do exame uma condena. Posso ser condescendente
com os outros, mas comigo mesmo não posso, sou inclemente. Não me perdou-o.
Rever a minha vida, fica sempre aquém das minhas espectativas. E não estou a
falar de coisas concretas, como por exemplo, o desempenho profissional.
Avalio-me desde um ponto de vista moral. A todos que se aproximaram muito de
mim, queimei-os. Não me falam nem querem falar de mim ou comigo. Sou um pequeno
filho da puta que quando morrer ninguém vai dar por ela. Entretanto vou tentar
descobrir onde se cometeram os erros e quais foram as opções, as tristes e as felizes.
Tentar encaixar o eu com as suas circunstâncias. Avaliar se valeu a pena. Sobretudo,
tentar adivinhar se ainda vai valer a pena. E como.
Falo da mim na medida em que me
ajude a interpretar o desastre, a tragédia, a devastação. A atravessar o resto
de uma paisagem árida e arrasada. E tentar aprender a conviver comigo e com a
minha bipolaridade. Somos aquilo em que participamos, as cenas das quais fomos
protagonistas ou figurantes. Mas, não menos importante, somos aquilo que pensamos,
aquilo em que acreditamos, aquilo que descobrimos. E com estas matérias deletérias,
com as nossas convicções, com as nossas emoções, sentimentos, recordações, memórias
de momentos, com a vida referenciada pela aproximação ou distanciamento em
relação ao amor, vamos tecendo e destecendo a vida. Se tiver sorte vou fazer uma
arqueologia dentro de mim. Escavar, sacudir a poeira, tentar ver. E depois de
tudo lavado e exposto vamos lá ver se consigo fazer as pazes comigo. Não por
ter cometido um pecado ou um erro. Mas muitos, todos, os mesmo grandes, e mesmo
os pequenos.
Nos dois sábados seguintes, a Maria José encontrava-me
sentado ao computador, quando chegava. Trazia-me café, arrumava a casa,
espreitava-me por cima do ombro, vigiava-me pelo canto do olho, votava a fazer
café, e lá me deixava, sentado no mesmo sítio, a bater como um desesperado,
contra o computador. Em duas semanas, tinha as 60 mil palavras da coluna deste
livro, que podia ter começado assim: chamo-me Jaime Da Costa Senra e esta é a autobiografia
que escrevi em Março de 2011, poucos dias depois de morrer.